Resenha

POR SIMONE SHUBA

O ano de 2016 traz ao teatro um grande presente: a publicação de Stanislávski – Vida, Obra e Sistema (FUNARTE, 2016), de Elena Vássina e Aimar Labaki, relevante contribuição para as artes cênicas sobre a vida e obra de Stanislávski. Trata-se de estudo com conteúdo inédito no Brasil, muito bem selecionado, com traduções diretamente da língua russa. Faz parte da poética dos autores Vássina e Labaki dar voz ao homem, artista e pedagogo Constantin Stanislávski, envolvendo o leitor no pensamento deste gênio. Objeto riquíssimo, o livro é organizado de forma que o receptor possa ter compreensão mais aprofundada acerca da vida e da obra do diretor russo.

Logo no primeiro capítulo, intitulado Uma Vida, Dialética da Criação percebemos a intersecção entre vida e arte na trajetória de Stanislávski; sabores, dissabores, experiências artísticas e pessoais são relatadas, como na página 55, onde, após a Revolução de 1917, Stanislávski, homem rico, se vê, do dia para a noite, com seus bens e fortuna confiscados; com a guerra civil, ele encarava longas filas para receber um saco de batatas:                                                                                                                                                                                                  O ápice deste calvário foi sua prisão em 1919, sob suspeita de ser contra-revolucionário, por ser industrial (ou ex-industrial, posto que as suas fábricas haviam sido expropriadas), passou uma noite encarcerado na TCHEKA, a Comissão Extraordinária para o Combate da Sabotagem e de Atos Contra a Revolução. A traumática experiência o marcaria por toda sua vida.

Ainda neste capítulo, os autores enfatizam o olhar elevado e sensível de Stanislávski acerca da consciência humana. “Todo o trabalho de Stanislávski tem como principal motivação a ideia de aperfeiçoamento do ser humano” (p.46).

O segundo capítulo fecha a primeira parte de três e expõe As Encruzilhadas do Sistema, como exemplo, a Memória Afetiva2, um dos elementos mais espinhosos do Sistema Stanislávski. Muitos, por falta de compreensão, acreditaram que Stanislávski abandonou este elemento ao trabalhar com a Análise Ativa. Aqui, pode-se conferir através das próprias palavras de Stanislávski em 1937, um ano antes de sua morte. “[…] É mesmo um absurdo dizer que renunciei à memória dos sentimentos” (p. 113). Encontra-se também neste capítulo importante reflexão e registro sobre o trabalho de Stanislávski com a Ioga, de onde surgirá inspiração e referência para a constituição de elementos primordiais para o seu Sistema.

O capítulo três compreende a segunda parte do livro e é nomeado Trajetória do Sistema por Constantin Stanislávski, Reflexões, Descobertas, Resultado. Aqui, encontramos um vasto material precioso com anotações artísticas, definições sobre: a vontade, o consciente e o inconsciente na criação. Abaixo, o pensamento de Stanislávski sobre o clichê:

O Clichê é algo normal, como a mentira do lado da verdade, como o mal ao lado do bem. Por isso novos e mais novos clichês devem nascer e o ator deve sempre continuamente arrancá-los como ervas daninhas que sufocam as rosas (p.148-149).

A terceira e última parte compreende os capítulos quatro, Sobre o Sistemao capítulo cinco, Último Stanislávski; capítulo seis, Conversas Com os Mestres do TAM; capítulo sete, Conceitos do Trabalho do Ator Sobre Si Mesmo.

Em Sobre o Sistema, Vássina e Labaki retratam o empenho de Stanislávski em trabalhar, desenvolver e transmitir suas descobertas sobre o Sistema. Em um trecho sobre a natureza do artista, podemos notar sua incansável busca pela verdade na arte:

A arte é uma verdade que é linda e maravilhosa por sua natureza. A violência contra a natureza é uma monstruosidade e uma mentira. Ela contradiz a verdade natural. Mentira e monstruosidade não podem ser belas. Mentira e monstruosidade são incompatíveis com a arte verdadeira. A artificialidade nunca se tornará uma arte verdadeira. Tenham medo da violência e não atrapalhem a vida normal e habitual de sua natureza (p. 201).

Resenha

Em Último Stanislávski, está registrada a derradeira fase do mestre russo, seus escritos contêm descrições detalhadas de suas últimas experiências artísticas. Abaixo pensamento de Stanislávski sobre as particularidades do novo método:

Primeira particularidade […] O novo método nos permite resolver as questões do papel a partir da vida do ator, ou seja, em seu próprio nome. […] A segunda particularidade do novo método […] ele faz o artista mergulhar na profundidade psicológica da vida do papel, exatamente na profundidade de sua alma. O caminho mais acessível para isso é a criação de uma linha de ações físicas externas e orgânicas […] A ação física não é um objetivo em si, mas um meio para a criação da linha exterior e depois interior da lógica e da coerência no desenvolvimento do papel. […] utiliza a ligação inseparável do exterior com o interior, do corpo com a alma […] A terceira particularidade do novo procedimento na abordagem do papel é que ele foge a qualquer tipo de violência. Quarta particularidade evidente na abordagem do papel do novo método é que nosso procedimento direciona toda a nossa atenção à ação física, e dessa maneira se afasta do sentimento. Graças a isso, a vida do criador é entregue ao poder da mágica natureza humana e de seu subconsciente […] A quinta particularidade feliz do novo método é que ele se volta para dentro e não tolera ações físicas que não sejam justificadas por dentro [….] (p. 240-243).

O capítulo seis, Conversas Com os Mestres do TAM, traz registros de diálogos que ocorreram em 1936. Gostaria de destacar um trecho, que é muito comum ouvir dos atores:

O.L. Knípper / Tchékhova – A coisa mais difícil é falar com suas próprias palavras.

  1. Stanislávski – Você vai relatar para mim a lógica das ideias, e não as palavras das ideias. Ela ficará enraizada no seu cérebro. Seus músculos serão impulsionados por seus sentimentos, pela linha lógica da sequência de ideias, e não apenas pelas palavras. A pior coisa que pode acontecer é as palavras serem ditas, mas os sentimentos atrasarem […] (p. 268-269).

 

Stanislávski Vida Obra e Sistema traz, como uma joia rara, dentre todos os presentes desta publicação, como um brinde, os conceitos do trabalho do ator sobre si mesmo: Vivência; Ação, “Se” Mágico; Circunstâncias Propostas; Atuação em Geral; Imaginação; Visualização; Atenção Cênica; Relaxamento Muscular; Trechos e Tarefas; Sentido da Verdade e da Fé; Ações Físicas; “Eu Existo”; Memória Emocional; Comunicação; Irradiação e Inradiação; Supertarefa e Ação Transversal. Um pequeno aperitivo:

Você sente que, além da discussão verbal e do intercâmbio mental de ideias, se produz ao mesmo tempo dento de você um processo de percepção recíproca, de absorção e envio de uma corrente com os olhos? É a comunicação invisível por meio da inradiação e da irradiação, que como uma corrente submarina, se move constantemente por baixo das palavras e dos silêncios, e cria uma ligação invisível entre os sujeitos que resulta em uma engrenagem interna (p. 313).

Este livro é de uma magnitude rara, com grande destaque para o extenso material inédito acerca de Stanislávski; Elena Vássina e Amir Labaki, autores do livro, atuam com relevância no ensino, na pesquisa, como no cenário artístico e cultural em nosso país, e com a escrita generosa nos dão a oportunidade de conhecer Stanislávski por ele mesmo.

  1. Mestra em literatura e cultura russas pela FFLCH/USP e pesquisadora do Sistema Stanislávski. Especialista em práticas meditativas criadas por Rajneesh, conhecido como Osho, é atriz, diretora e professora do Teatro Escola Macunaíma. É autora de Stanislávski em Processo: Um Mês no Campo – Turguêniev (Perspectiva, 2016).
  2. Conhecida no Brasil como Memória Emotiva.

Referências Bibliográficas 

VÁSSINA, Elena; LABAKI, Aimar. Stanislávski – Vida, Obra e Sistema. Rio de Janeiro: FUNARTE, 2016.

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