Quem existe ou age nas Circunstâncias Propostas: O ator ou a personagem?

Qual a diferença entre estudo e cena?

Por Felipe Rocha

Eu vou falar sobre uma das perguntas vencedoras do Quiz Stanislávski: Qual a diferença entre estudo e cena? Mas antes de entrar especificamente nesta questão, eu vou citar um trecho de um filme a que eu assisti e que me tocou profundamente. Pois ao ouvir estas palavras e ao ver esta cena, imediatamente, eu fui transportado para o que é o estudo de cena. Ou seja, a prática da investigação, da criação artística a partir dos princípios do Sistema Stanislávski. 

O filme se chama Assim Como Acima, Abaixo, da diretora libanesa Sarah Francis. A cena é muito simples: um homem caminha por um gramado em um espaço aberto. E enquanto ele caminha, a voz de uma mulher diz este texto:  

Enquanto caminhávamos, fomos aconselhados a não forçar qualquer significado em nossos gestos. Acreditava-se que o significado iria nos habitar e depois se retirar, assim como a maré. Tínhamos que recebê-lo quando ele se manifestasse e estar prontos para incorporá-lo por um tempo, antes de permitir que desencarnasse. Não estava claro se era a gente que criava o significado e o causava e o fazia existir por reconhecê-lo ou se o significado era feito por uma entidade separada independente de nós, vagando aleatoriamente pela terra com medo de ficar presa em um corpo possessivo dentro de um gesto apertado. Cada passo, cada contato com a terra era como um ritual de um chamado prestes a eclodir. 

O trecho acima aponta algumas questões fundamentais para pensarmos o trabalho por meio dos études (estudos). A criação deste método é um momento fundamental na trajetória do Stanislávski, já no final de sua vida. É quando ele entende que, para se investigar o material por meio da ação, que é psicofísica, precisamos conectar mente, corpo, pensamento, discurso, Supertarefa… E se a ação nos exige esta completude, não podemos investigar a obra apenas racionalmente. Tudo então precisa ser feito ao mesmo tempo, psicofisicamente.

 Étude ou estudo de cena 

Étude é um nome que vem das Artes Plásticas, mas é a mesma coisa que estudo de cena. Dentro do Sistema Stanislávski, ele se configura como um procedimento por meio do qual descobrimos a obra por nós mesmos, ao nos colocarmos em ação. E estas descobertas se dão pelo nosso modo de nos colocarmos nas Circunstâncias Propostas pela obra, pela forma como agimos nestas circunstâncias. 

 Neste processo, nós levamos todo o nosso modo de olhar o mundo, as nossas percepções históricas, sociais e políticas do mundo em que vivemos. Levamos também o que o nosso corpo carrega e a nossa história. Movidos por tudo isso, nos colocamos em jogo, em estudo, para descobrirmos o significado do material que estudamos. 

Mas estas descobertas acontecem apenas quando começamos a caminhar, como no texto que eu citei acima. Só descobrimos a vida do papel quando começamos a caminhar. Só descobrimos as relações com os nossos parceiros ou parceiras de cena quando começamos a caminhar. Assim, o estudo de cena é uma preparação para o não saber. Ele é uma preparação para nos permitirmos estar vazios e abertos o suficiente para descobrirmos o novo no momento da investigação. 

A cena 

Em oposição ao estudo, o que é uma cena? É quando o ator se coloca na prática para comprovar algo. Algo que racionalmente ele pensa sobre o texto, sobre o papel, suas relações e sobre ele mesmo. De modo que ele apenas organiza os elementos da teatralidade para comprovar algo que ele pensa que sabe sobre o material de estudo. Só que, neste caso, não existe investigação, não existe descoberta, não existe relação. E por quê? 

Na cena com um parceiro, é possível sabermos como ele vai agir sobre um determinado material antes do jogo começar? Não é! Pois ele carrega o seu modo olhar o mundo, a sua história, trajetória e imaginação, ou seja, as imagens internas de sua existência. E, ao mesmo tempo, eu carrego as minhas. É então a partir do jogo que nos descobrimos, posto não sabermos o que este jogo será até começarmos a jogar. 

A partir do momento em que nos dispomos a jogar, começamos a dar sentido, significado e a viver a obra inconscientemente. Ou ainda, começamos a vivê-la por meio dos nossos impulsos, sensações, descobertas e ações, que vão surgir quando vier a inspiração. E o que é a inspiração? Ela não é algo mágico! A inspiração acontece no momento em que o nosso corpo integralmente se permite a relação, a descoberta. E este é um momento de muita alegria para qualquer artista criador.

Estudo X Cena 

E quais perguntas podemos elaborar para saber se estamos fazendo um estudo ou preparando uma cena? “Estamos nos abrindo para descobrir algo?” “Queremos realmente investigar alguma coisa que não sabemos?” “A estrutura que estamos preparando nos permite trocar com os nossos parceiros ou parceiras de cena?” “Ela permite trocarmos com o espaço, com o texto, com os temas da obra?” “Ao realizarmos um estudo, nós descobrimos algo que não sabíamos?” “Algo novo se revelou sobre a obra para nós?” “Algo novo se revelou sobre a nossa relação com a obra, sobre a nossa visão dela, sobre nós mesmos, sobre o mundo?” 

Se nada se revelou, não foi um estudo, pois não houve investigação. Estes são alguns paradigmas para pensarmos a diferença entre estudo e cena. O estudo como o campo da ação, da investigação dos materiais, das relações, da obra pela ação ou por meio da ação. Enquanto a organização de uma cena se configura como a tentativa de elaborar teatralmente algo que já achamos saber sobre o material. 

O método das perguntas 

A pedra fundamental disso tudo é aprender a se fazer perguntas. Habitar-se a, constantemente, se fazer novas e novas perguntas. Esta é a grande pista para o artista que queira investigar um material e não comprovar falsas certezas. E isso mesmo depois que o espetáculo estreou ou quando já estamos criando as cenas finais. Pois só assim alcançaremos a um trabalho orgânico.Mesmo quando o material já está estruturado e nós sabemos quais são as cenas, como elas acontecem, ainda sim devemos pensar como se estivéssemos realizando um étude. Ainda que passemos o resto das nossas vidas fazendo uma mesma peça, a partir do treinamento psicofísico, cada dia será diferente do outro. E isso porque nós estamos fazendo naquele dia, na relação com o hoje, aqui e agora. Quando o nosso corpo compreende esta prática, ele está constantemente estudando, aprendendo e aprofundando o material cênico.


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